Entrevista EXPRESSO: Daniel Sampaio: “Não é fácil resistir à melancolia de olhar pela janela e ver o mundo lá fora. Mas a epidemia vai passar”

16.03.2020 às 11h49 por CHRISTIANA MARTINS

O psiquiatra Daniel Sampaio explica como as famílias podem lidar com uma situação prolongada de confinamento. Ensina o que se deve fazer com a exuberância dos adolescentes, a sua maior especialidade, e com a experiência de quem já viu muito ao longo de 74 anos, reconhece que a prova não será fácil para nínguém, mas lembra também que a História já ensinou que tudo passa e também esta epidemia vai ter um fim

Daniel Sampaio no seu gabinete
FOTO: Tiago Miranda

Há mais de cinco décadas que Daniel Sampaio ajuda jovens e famílias a ultrapassarem problemas de relacionamento e identidade. Desta vez, o psiquiatra enfrenta uma crise que não poupa ninguém: a epidemia de covid-19.

A pedido do Expresso, Daniel Sampaio dá conselhos concretos a quem terá de viver longas semanas fechado em casa. Filhos e pais terão de aprender a evitar conflitos e reforçar os laços de união. O psiquiatra dá especial atenção aos adolescentes, que vivem um período caracterizado pela afirmação da personalidade e precisam de estar em grupo, situação de que agora se veem privados.

 

Numa situação de confinamento compulsório e por um prazo longo e para já até indefinido, que estratégias devem encontrar as famílias para conviverem, minimizando as hipóteses de confronto e de escalada da agressividade?

Torna-se essencial reforçar a coesão familiar, isto é, robustecer os laços emocionais que unem os elementos da família. Todos devem perceber que a família se deve unir à volta da sua sobrevivência como um todo, porque assim reage melhor à adversidade. Devem ser garantidos momentos conjuntos, por exemplo, refeições e alguns momentos de descontração, mas também deve ser preservado um espaço de privacidade, crucial para alguma reflexão individual. É muito importante estimular o exercício físico, que tem um importante papel no controlo da ansiedade. Existem sítios na internet que permitem obter informação para a realização de exercícios em casa, que devem ser seguidos por todos os elementos da família, de modo adequado à idade de cada um. E que podem também ser realizados em conjunto, proporcionando momentos de lazer.

 

Muitas destas famílias vão viver várias semanas em apartamentos pequenos, sem grande possibilidade de salvaguardarem a privacidade individual. Nestes casos, como resistir e evitar o conflito?

Os conflitos devem ser minimizados. É provável que haja aumento de ansiedade em várias pessoas da família, o que à partida favorece a conflitualidade. Mas é importante não discutir, baixar a tensão, regular as emoções. A regulação emocional é o processo pelo qual conhecemos as nossas emoções e que nos ajuda a lidar com elas. Assim, devemos interrogar-nos sobre as nossas emoções, procurar não as “descarregar” nos outros e ajudar os outros a fazer o mesmo.

 

No caso de haver adolescentes, que especificidades de relacionamento podem e devem ser desenvolvidas?

Os adolescentes podem ter tendência a minimizar o problema. São jovens e não constituem um grupo de risco. Devemos alertá-los para a necessidade de atuarmos de forma conjunta. Aqui o exercício físico é importante e é natural que os jovens a ele adiram facilmente. Jogos de cartas e de tabuleiro, quiz na internet, pesquisa conjunta, música e leitura são recomendáveis. Existe um romance magistral, “A Peste”, de Albert Camus (curiosamente agora muito lido), que todos com mais de 15 anos deveriam ler neste momento.

 

Numa faixa etária marcada pelo comportamento de grupo, como fazer os adolescentes aceitarem o isolamento? É possível ou deve-se proibir as suas saídas?

Os adolescentes saudáveis estão sempre em contacto com os amigos. Estimulemos agora esse contacto e não os macemos com supostas dependências do telemóvel, que ainda por cima só acontecem com alguns. Conversemos com os jovens e, sobretudo, aproveitemos o momento para os ouvir, o que falta em muitas famílias. Se for mesmo obrigatória a presença em casa, deveremos proibir as saídas. Mas podemos, por exemplo, estimular que telefonem aos avós e, se for necessário, que organizem para os idosos da família as compras online de alimentos. Os adolescentes em tratamento psiquiátrico devem sempre contactar o médico que os assiste, para evitar o agravamento da situação.

 

É importante preservar as rotinas e obrigá-los a estudar ou é preferível dar-lhes liberdade na utilização do tempo? O cumprimento de tarefas domésticas deve ser incentivado?

Os adolescentes não estão de férias. Tudo depende da organização das escolas e do grau de ensino, mas é importante que estudem. Ainda não sabemos como, mas vão ser avaliados no final de ano e é bom que se preparem. Devemos ajudar a planear a utilização do tempo em cada dia, que deve contemplar um período de estudo, um tempo de conversa com os amigos e com a família, um momento de exercício físico e um momento de diversão. Devem participar nas tarefas domésticas e arrumar o quarto, o que costuma ser necessário…

 

Como resistir à melancolia de olhar pela janela, ver o mundo lá fora e não poder sair?

Não é fácil, mas é necessário. Podemos sempre imaginar, sonhar, conversar. E ter a certeza que a epidemia vai passar, como a História nos ensina.

 

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