Entrevista Expresso: É urgente plano de contingência para outras doenças

Os doentes estão a chegar mais tarde aos hospitais e com prognósticos mais reservados. Em consequência da paragem da atividade programada do SNS durante a primeira vaga da pandemia, há quem apareça agora com tumores já inoperáveis. Ninguém duvida do impacto que o cancelamento de milhares de cirurgias, consultas, exames e rastreios teve e ainda terá na mortalidade por outras patologias. Ainda assim, esta semana o Governo voltou a autorizar a interrupção de toda a atividade não urgente dos hospitais para atender aos infetados de covid-19. Ouvidos pelo Expresso, alguns dos maiores especialistas portugueses em áreas sensíveis como a oncologia, cirurgia cardiotorácica ou gastrenterologia criticam a estratégia e sublinham a necessidade de se manter o atendimento atempado às doenças que causam mais mortes, como o cancro.

“Em oito meses, tivemos cerca de 2700 mortes por covid-19, mas todos os dias morrem mais de 300 pessoas em Portugal de outras doenças e alguns desses óbitos seriam evitáveis e acontecem em pessoas mais novas do que a maior parte dos afetados pela pandemia. Quase 70% das mortes por covid são de pessoas com mais de 80 anos. Mas com a paragem da atividade nos hospitais serão pessoas mais novas que vão morrer”, avisa Rui Tato Marinho, diretor do Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

Só em abril, houve uma quebra de 90% no diagnóstico desta área, responsável pelos cancros gástricos, por exemplo. Agora, “aprendemos a proteger-nos, temos mais recursos e podemos manter a atividade sem agravar o risco de contágio”, garante o especialista.

Luís Costa, diretor do serviço de oncologia no mesmo centro hospitalar, que integra o Hospital de Santa Maria, garante que, embora não haja números oficiais, o cancelamento de milhares de rastreios fez com que os doentes estejam agora a aparecer em estado mais avançado: “É uma realidade diária. Estamos a ter mais pessoas com cancros metastáticos”, alerta. E avisa que a mortalidade vai aumentar, embora os números demorem alguns anos a ser visíveis.

“O risco de morrermos por cancro é muito maior do que de morrermos por covid. Mas como o cancro não é contagioso, temos a perceção de que não nos vai afetar. Estamos a negligenciar uma doença muito mais letal”, critica o oncologista, que defende que os óbitos por covid-19 sejam divulgados em simultâneo com as mortes por outras doenças, para que estas não continuem a ficar secundarizadas. “O que se tem passado é desproporcionado. Infelizmente, a Medicina e a Ciência não deram à pandemia uma resposta tão eficaz como se desejaria, abrindo espaço a uma intervenção demasiado politizada”, lamenta.

Para que isso não continue a acontecer, “tem de haver um plano de contingência para os doentes não-covid”, defende Luís Costa, um dos mais conceituados especialistas no tratamento do cancro da mama em Portugal: “Está na hora de a tutela criar uma equipa, sobretudo para as áreas de mortalidade muito elevada.” Um grupo de trabalho capaz de determinar como se garante a realização dos exames de diagnóstico, consultas e tratamentos.

“À BEIRA DA CATÁSTROFE”

José Fragata, diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, faz um diagnóstico claro: “Se correr mal, estamos à beira de uma catástrofe de saúde, porque rutura já existe para a população não covid. As mortes provocadas pelo novo coronavírus são uma pequena parte da fatura global da pandemia, a ponta do icebergue do que aconteceu às pessoas com outras doenças”, alerta.

Para o especialista, “o SNS já não tem elasticidade e o Estado tem de chamar os privados e o sector social, que detêm metade das camas do Sistema Nacional de Saúde, e pedir-lhes que tomem conta dos cidadãos nas áreas onde estão mais à vontade, e deixar a covid, os transplantes e os atos complexos para os hospitais públicos”.

Na primeira vaga, Fragata considera que a resposta do país à pandemia “foi boa e bem organizada, graças aos profissionais, que foram exemplares”. “Reagimos bem, o primeiro-ministro teve uma liderança espetacular, mas ficámos a olhar para o sucesso. Era previsível uma segunda vaga e foi aumentado o mais fácil: camas e ventiladores. Mas não é à última hora que se contratam profissionais. Isso mostra falta de planeamento”, critica.

António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência, é mais prudente na avaliação da estratégia de Marta Temido. “Não é útil nesta fase dizer se o Governo faz bem ou mal, mas a leitura dos dados permite-me conclusões diversas. Uma coisa é inquestionável: focar todas as atenções numa doença tem consequências graves para todas as outras”, frisa.

Os problemas cresceram também na área da saúde mental. “O aumento das consultas tem sido muito expressivo. Nunca aconteceu algo desta dimensão. Há pessoas idosas cheias de ansiedade e jovens com enormes problemas de relacionamento. O nível geral de tensão da sociedade aumentou muito. Os hospitais estão sob enorme pressão, com os internamentos cheios”, afirma o psiquiatra Daniel Sampaio, que defende a adoção urgente de medidas.

“Em 2017, presidi ao grupo de trabalho que decidiu contratar mais 40 psicólogos para os centros de saúde. Nem um único foi contratado. Era o mínimo. Não foram criados estágios para psicólogos no SNS e mantém-se o problema dos cuidados continuados para saúde mental. É preciso recorrer a contratos individuais de trabalho. Não há tempo para se esperar pelos concursos públicos”, diz o psiquiatra, apelando aos médicos para lutarem pela manutenção das consultas presenciais.

Para Daniel Sampaio, é preciso igualmente mudar a política de comunicação em torno da pandemia. “Seria muito importante que a ministra da Saúde fosse aos hospitais, às escolas e passasse uma mensagem de incentivo”. E que se acabasse com “a imagem de três pessoas sentadas atrás de uma mesa porque as imagens excessivamente repetidas perdem a eficácia. Nesta altura é importante manter as pessoas atentas e disponíveis para a luta”.

Fonte: https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2506/html/primeiro-caderno/sociedade/e-urgente-plano-de-contingencia-para-outras-doencas