
O psiquiatra Daniel Sampaio lançou recentemente o livro “Um Amor que Não se Diz”, onde reflete sobre o tema da homossexualidade e da orientação sexual a partir da sua experiência clínica.
O que o levou a escrever sobre a homossexualidade e porquê agora?
Toda a vida acompanhei terapeuticamente pessoas que se debatiam com questões sobre a sua orientação sexual, mas não é por acaso que este livro surge agora. Estamos a assistir ao aparecimento de cada vez mais conteúdos homofóbicos em muitas sociedades. Estávamos a caminhar no sentido da inclusão, mas nos últimos anos começou a haver um recuo. Nas redes sociais ou em escolas vemos mensagens de ódio e de violência em relação a pessoas que são diferentes, e eu achei que era importante falar sobre a homofobia e sobre as ideias que a sociedade tem acerca deste tema.
Acompanha há décadas este tema. Como evoluiu a visão da sociedade?
A história da homossexualidade é muito interessante, porque durante séculos foi considerada uma coisa contranatura mas que não era vista como um pecado. Foi a Inquisição, que durou três séculos em Portugal, que introduziu essa ideia que estigmatizou os homossexuais. Também no Estado Novo foram muito reprimidos, perseguidos e até presos, o que fez com que se recolhessem mais ao silêncio. Houve claramente uma abertura no início do século XXI, mas a homofobia continua a ser uma grande questão, nomeadamente a homofobia internalizada, que tem a ver com o estigma que os próprios interiorizam.
Como se manifesta?
Quando um jovem, geralmente na adolescência, começa a sentir atração por pessoas do mesmo sexo, tem uma enorme dificuldade em falar disso. Eles dizem uma coisa muito curiosa: “Os heterossexuais não têm de dizer que o são porque toda a gente parte do princípio que sim, mas nós, a certa altura, temos de dizer que somos diferentes.” Esse movimento de ‘sair do armário’, como se costuma dizer, é muito difícil, porque as pessoas continuam a internalizar a homofobia. Acham que vão ser discriminadas, maltratadas, e muitas vezes têm vergonha da sua própria orientação sexual porque interiorizaram as mensagens negativas da sociedade. Há muita homofobia em Portugal, nas famílias e nas escolas. No livro quis falar sobre essa dificuldade que as pessoas sentem. Muitas ainda vivem no silêncio.
É ERRADA A IDEIA DE QUE OS CASAIS DO MESMO SEXO SÃO MAIS INFIÉIS. O DESEJO DE UMA RELAÇÃO ESTÁVEL É IGUAL
Que feridas deixa esse silêncio?
Estas pessoas sofrem mais de depressão e de ansiedade e têm mais tentativas de suicídio do que os outros do mesmo grupo etário. Observam-se muito a si próprias, os gestos, a voz, para não terem comportamentos que mostrem que são homossexuais. Essa autocensura leva a sentimentos de mal-estar e a sintomas de depressão e ansiedade, que é o que muitas vezes os leva ao psicólogo ou ao psiquiatra. O trabalho do terapeuta não é tentar ‘reverter’ a homossexualidade, como infelizmente ainda acontece, mas ajudar as pessoas a assumirem e afirmarem a sua identidade, que é um processo psicologicamente muito difícil e que passa por várias fases.
Quais?
A primeira é sentir-se diferente. Por exemplo, um adolescente vê os outros a falar sobre raparigas, percebe que não sente a mesma atração e sente grande mal-estar quando tem fantasias com outros rapazes. Na fase seguinte, começa a tolerar essa diferença e diz para si próprio que é gay ou lésbica. Depois há a fase em que o diz para fora, apenas ao seu círculo mais íntimo, e a última fase em que o assume na comunidade. É muito importante que personalidades públicas o façam – “eu sou diretor de uma empresa e sou gay” ou “eu sou vereadora numa Câmara e sou lésbica”, por exemplo -, porque isso dá força aos que vivem escondidos. Mas este processo pode levar anos e em muitos casos nunca se chega a estas fases.
Esse processo de coming out é igual em homens e mulheres?
É mais fácil nas mulheres. A homossexualidade feminina é mais bem aceite, enquanto a masculina é mais criticada socialmente. Está muito ligada à imagem de um homem fraco.
ESTÁVAMOS A CAMINHAR NO SENTIDO DA INCLUSÃO, MAS NOS ÚLTIMOS ANOS COMEÇOU A HAVER UM RECUO
O recalcamento pode ser tão grande que a própria pessoa não tem consciência da sua homossexualidade?
Sim, porque a homofobia moldou desde muito cedo o seu pensamento, fazendo-a esconder-se de si própria. E por vezes até tem para o exterior um discurso homofóbico, pensando que, se o fizer, ninguém pensará que é gay.
Que papel deve ter a família?
A família pode ser um território de grande acolhimento e inclusão, mas há muitas que são bastante opressoras. Continuam a existir famílias que dizem “tu és doente, tens de te tratar”, “estás a dar-me um grande desgosto” ou “onde é que eu falhei para seres assim?”. E outras que aparentemente apoiam mas pedem-lhe para não assumir em público ou para o esconder de outros familiares, por exemplo dos avós. Há muitos casos em que a mãe sabe mas diz “nunca digas ao teu pai, porque ele ia ter um desgosto”. Estes primeiros comentários são muito importantes, porque as pessoas interiorizam estas mensagens, que acabam por reforçar o medo de rejeição que já sentem. É preciso alguma prudência e por vezes é aconselhável não dizer logo à familia.
Há diferenças na forma como casais homossexuais e heterossexuais vivem o amor?
Não. O cérebro modifica-se com o amor; há zonas do cérebro que se ativam quando a pessoa está enamorada e outras quando a pessoa é rejeitada ou passa por uma rutura afetiva. Mas quando se compara o cérebro de pessoas homossexuais com o de heterossexuais, vemos que é exatamente igual. Não há nenhum comprovativo biológico de que sejam diferentes, nem a nível cerebral nem a nível hormonal. É importante dizê-lo porque ainda subsistem muitas ideias erradas sobre isso.
Culturalmente há diferenças na forma como é vivida a relação? Por vezes há a ideia de que nos casais homossexuais masculinos há maior tendência para a diversidade de experiências. É verdade?
Não. É errada a ideia de que os casais do mesmo sexo são mais infiéis. O desejo de uma relação estável é igual, assim como os processos de vinculação afetiva e segurança emocional. O que é diferente, e pode repercutir-se na relação, é o percurso individual de cada um [dos membros do casal] em relação à afirmação da sua identidade gay ou lésbica. A terapia de casal em casais hetero ou homossexuais recai exatamente sobre as mesmas questões.
A orientação sexual pode mudar?
Sabe-se desde os anos 50, com a investigação de Alfred Kinsey, que a orientação sexual pode mudar ao longo da vida e não é completamente estanque. Há pessoas predominantemente heterossexuais mas que têm relações homossexuais; há outras predominantemente homossexuais mas que têm relações heterossexuais, e há as que mudam. Aparentemente, foram heterossexuais, casaram e muito mais tarde tornaram-se homossexuais, como o caso do Luís, de que falo no livro. Casou, adorava a mulher, parecia que estava tudo bem, até que conheceu um homem… Na juventude tinha tido dúvidas sobre a sua orientação sexual e a homossexualidade passou-lhe pela cabeça, mas ou não foi suficientemente forte ou reprimiu-o. Há uma grande variedade de situações. E é muito importante começar a falar destas questões a partir do 7º ano e explicar que há pessoas diferentes.
Jornalista: Joana Pereira Bastos
Fotografia: Tiago Miranda
Entrevista em Expresso.pt: https://expresso.pt/sociedade/2025-10-30-daniel-sampaio-a-orientacao-sexual-pode-mudar-ao-longo-da-vida-a7dc7646